Vicente de Carvalho – o poeta
Jornal A Tribuna, 21 de julho de 1957
Quando em 1908, Euclides da Cunha traçava o prefácio de “Poemas e Canções”, um escritor francês ainda vivo, Jules Romains, lançava na França o seu “La Vie Unanime”, ato criador de poesia, não tínhamos aqui correspondência melhor dessa concepção de Poesia do que Vicente de Carvalho… Não, não é o caso de influência alguma, mas uma procura árdua de originalidade de expressão, depois do simbolismo e à margem do parnasianismo ainda vigente para muitos. Depois, o caso paulista, que é um caso à parte na vida brasileira. Vicente de Carvalho não foi um “unamiste”, do tipo de Jules Romains, o “chef de l’école”, ou da plêiade em sua volta, Chenevière, Duhamel, Vildrac, Jouve, Arcos… Pois nem o “unanimisme” foi mais do que uma tendência a reunir poetas de um certo tempo, de uma certa orientação expressiva – não foi uma escola baseada numa escolástica.
Era esse, exatamente, o tempo da transição: os clarões espantosos e solitários de sessenta anos de poesia marcavam as possibilidades do novo século. Nerval – o fim do romantismo – , Baudelaire, – o princípio da poesia moderna, Lautreamont e Rimbaud, fulgurações que só o surrealismo depois de 1920 viria a valorizar plenamente, tudo isso passa à margem dos que representaram esse movimento do princípio do século. Dizem muitos que o século XIX, de seu estilo de vida, “la belle époque”, de que nos dá medida, no Brasil, uma evocação recente, no livro de Brito Broca.
Cronologicamente, Vicente de Carvalho encerra a poesia, imediatamente anterior à revolução modernista. Na poesia, ele tem o papel de Monteiro Lobato no conto e de Lima Barreto no romance. Naturalmente, cada um com suas características próprias… “Poemas e Canções” chega num momento como que “definitivo”. Sua cristalização poética é extraordinária. Vicente de Carvalho não se deixa influenciar a não ser por uma responsabilidade total do momento que vivia, e sua poesia toda está contida nos versos do livro admirável, para o qual fôra certíssimo escolher a apresentação de Euclides, o que o autor do “Sertões” mesmo não compreendera, ao confessar-se pouco apto a julgar e a apreciar… Contudo, seu prefácio é notavelmente adequado a “Poemas e Canções”.
O caso “paulista” a que nos referimos e a que responde Vicente de Carvalho consiste na sua contensão verbal, tão nítida, tão precisa, até nas páginas mais líricas de “Rosa, rosa de amor”. É um sentido de discreção que não se encontra em poeta nenhum seu contemporâneo. Apanhemos uma crítica sobre o Jules Romain “unanimiste”, uma crítica da época, que nos diz: “há nele um interesse pelas coisas sociais, os sentimentos coletivos. E, sobretudo, um instrumento: o estilo curiosamente franco, despojado (não nos deixemos ficar numa aparência de prosaismo), uma linguagem estreitamente modelada, sobre um ritmo exigente e preciso, linguagem de uma simplicidade voluntária, que visa a atingir diretamente as coisas, sem alegorias.
A imagem, com efeito, em Romains (ou em Vicente de Carvalho, acrescentamos) tem um novo papel: ela não é uma ilustração, não é um enfeite ou um perfume; ela é precisamente, a expressão de nossa ação sobre as coisas, a forma mesma de nossa sensação, de nossa emoção, de nosso desejo.” Mencionemos, ligeiramente, uma comparação que responde ao início da crítica citada: enquanto Bilac fazia uma epopéia do “Caçador de esmeraldas”, Vicente cantava o “Fugindo ao cativeiro” da epopéia de teor social que teve por paisagem o Jabaquara… Cada trecho da crítica sobre o “unanimiste” de Jules Romains, tem aplicação nos “Poemas e Canções”. Só falta – o que enriqueceu mais Vicente de Carvalho – a influência do mar. Nisto, o poeta extraordinário encontrou a sua grande medida, pois Vicente de Carvalho se educara visualmente em ver o mar – assim, quando seu lirismo atinge os grandes momentos, é no verde do mar que ele coloca a identidade dos olhos da mulher amada. Através dessa líquida esmeralda, surgem os sonhos do mar, as encantadas ilhas, feitas para o amor, de que os olhos da mulher amada tão eloquentemente falam.
Sabemos que ao temperamento brasileiro não responde uma eloquência assim discreta, à sobriedade precisa dessa expressão, jamais derramada, nunca explosiva, nunca espetaculosa. Mas esta contensão responde à taciturnidade do paulista, ao seu pendor para a consideração ponderada. Vicente de Carvalho não fez escola, mas teve um continuador que será Amadeu Amaral, já nos tempos do modernismo. A poesia brasileira sofre logo o impacto da renovação. A nova poética não sai de Vicente de Carvalho, mas ele se tornou o maior representante desse período de encerramento da poesia “antes” do modernismo.
As homenagens que aqui deixamos ao excelso cantor de “Palavras ao Mar” encerram também a primeira parte do nosso trabalho.
Mara Lobo