Porque ler Machado de Assis
Jorna A Tribuna, 26 de maio de 1957
Nascido em 1839, Machado de Assis segue-se em nossa cronologia, a Manuel Antônio de Almeida, porque é o mais qualificado dos nomes que trabalharam em nossas letras no século passado. Sua obra cobriu todas as técnicas – serviu-se da poesia, do conto, do romance, da crônica. Pode-se discordar do Machado poeta, mas jamais ignorar-se o do conto e o do romance. A crônica ele a cultivou também com grande eficiência.
Rfugiando-se numa literatura de difícil acesso em sua profundidade, ele armou com artifícios sutís uma aura encantadora que prende o leitor à superficialidade de suas histórias e de seus personagens. Estes são manipulados, na fase amadurecida do escritor, pela frequente marca da crítica machadeana, toda revestida de um amargo pessimismo, revolvido num sorriso desencantado mas permanente. Machado é assim o escritor que utilizou mais longamente e mais eficientemente entre nós o humor. Se sua poesia não escapa nos versos da mocidade ao fim do romantismo, a literatura machadeana é inclassificável, se não a colocarmos sob o signo do humor.
Esta situação nos leva então a uma definição, pelo menos aproximada, do que é o humor, situado além da ironia e do sarcasmo, numa região neutra, em que o humorista se coloca acima dos valores e das categorias, para subverter pelo rebaixamento as dores e as angústias, as desilusões e os reveses, tratando-os sob um prisma desmoralizador…
É uma posição heróica, de total sacrifício das coisas sagradas da vida, mas isto não é jamais colocado em função de tragédia, senão de renúncia total, através de um sorriso, que mostra o domínio da inteligência em conflito com a realidade. O humorista chega à tragédia mais a supera e além dela a transforma em comédia sem cair na comédia – rebaixa a tragédia e sorri dela e de si mesmo com infinita piedade mas sem caridade, a lágrima apenas brilha em seus olhos, mas os lábios sorriem sem doçura, sem complacência, mas com absoluta dignidade, quase com correção. Por isso se adaptou tão bem à alma inglesa, à literatura britânica, essa modalidade de crítica, ao social e ao humano, negativa mas indispensável como o sal da terra à estranha flor nascida em uma área febril do conhecimento intelectual, febre que não se apaga, mas cuja temperatura não se sente. Um dos definidores do humor assegura-nos que se trata de “uma febre álgida de inteligência”.
Homem de cor, doente, da mesma sagrada doença que sofria Dostoiévski, sem filhos, mas dotado de uma inteligência muito acima do vulgar, ressentido mas dominando o seu ressentimento pela infinita piedade da condição humana, Machado de Assis, em cuja componente psicológica e espiritual viviam traços dos mais vivos da alma brasileira, pôs em tons baixos em sua literatura a sensualidade, a malícia, as aspirações indefiníveis.
Há, pois, em Machado de Assis, uma filosofia que se torna apenas sorriso e sorriso amargo, dissecando a realidade viva… Um longo caminho fôra até então percorrido. O escritor formara solidamente a sua base material – conheceu e utilizou a língua com uma dutilidade, um espírito e uma sabedoria que o tornam o mais puro e o mais capacitado de nossos escritores. Sua literatura merece ser conhecida também sob esse aspecto de uma límpida manipulação da língua, como expressão literária.
É essa uma das suas grandes qualidades.
Com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado de Assis atinge, aos 42 anos de idade, a sua mais alta forma – é o primeiro romance brasileiro em que se define o aparecimento do humor em todo o seu sentido moderno e eficiente. Daí por diante, em seus contos e romances, o escritor continuará sorrindo mecanicamente diante dos aspectos vivos da realidade que trabalha e critica. Indubitavelmente, Machado de Assis tornou-se a maior expressão literária do seu tempo – ao fundar-se a Academia Brasileira de Letras, em 1897, é aclamado presidente e nesse posto permanece até a morte. É por isso que se dá à Academia o nome de “casa de Machado de Assis”.
Houve nele o literato completo em toda a sua significação. Machado de Assis não desdenhou jamais o acabamento, a correção da frase, o rigor mesmo de uma expressividade buscada ao máximo. Fez literatura como tal, sem descer do culto que as belas letras exigem. Toda a obra de Machado de Assis deve ser lida com atenção e amor. É o mais completado de nossos escritores.
MARA LOBO