LIMA BARRETO, uma experiência suburbana e popular do Rio

LIMA BARRETO, uma experiência suburbana e popular do Rio

Jornal A Tribuna, 23 de junho de 1957

Relata Lima Barreto a linha do romance de costumes inaugurada por Manuel Antônio de Almeida, como vimos, nas “Memórias de um sargento de milícias”. Coincide o próprio título de seu primeiro romance com aquele – que em 1908, surgia, no Rio, editado em Portugal, o volume “Recordações do escrivão Isaías Caminha”. Observe-se a transição apenas do personagem – em Almeida é um sargento de Milícia, em Lima Barreto, na República florescente, é um escrivão, o tipo do burocrata, que representa o homem médio da capital.

Mas não é aqui lugar para uma tentativa de comparações. Lima Barreto traz consigo, além do pendor literário mais aprofundado, modernamente informado, até mesmo no que toca às idéias socialistas, uma tragédia familiar e uma complexa psicologia de mestiço. Morrera-lhe doido o pai. Seu início de vida foi difícil e sua cor um obstáculo. Interrompera os estudos de engenharia. Fez-se amanuense da Secretaria da

Guerra por concurso – o que foi uma das raras alegrias de sua vida. O funcionário porém não anulou o escritor. Lima Barreto trabalha seus romances, em contos esboços e notas desde os vinte anos, senão antes.

A oportunidade da publicação de “Recordações do escritor Isaías Caminha” só lhe chega em 1908. Antes, começara a publicar alguns capítulos na revista que fundara, “Floreal”, com um prefácio que não foi reproduzido na primeira edição do livro, – fazer uma obra de ódio; de revolta enfim; mas uma defesa de acusações deduzidas superficialmente de aparências cuja essência explicadora, as mais das vezes, está na sociedade e não no indivíduo desprovido de tudo, de família, de afetos, de simpatia, de fortuna, isolado contra inimigos que o rodeiam, armados da velocidade da bala e da insídia do veneno. Entretanto, em torno do herói gravitam muitas figuras, facilmente reconhecíveis para os contemporâneos, e o fato é que Lima Barreto provocou escândalo com o livro… A crítica de Medeiros e Albuquerque é a primeira, e o romancista se vê atacado asperamente. Se esta crítica doeu a Lima Barreto, que no mesmo dia em que ela saiu publicada a revidara, a crítica seguinte, de Alcides Maya, que fora seu amigo, não deixa de ser também ferina… Os jornais consideram-se feridos pela referência expressa ao “Correio da Manhã”, e silenciam. Não obstante, o Rio de Janeiro reage, e o livro é bastante vendido. Não justificaria uma segunda edição imediatamente mais abriu o sulco ao escritor, que depois desta perturbadora aventura assumiria muitas posições de protesto e de crítica à política e à sociedade brasileira.

O caso de Lima Barreto é o mais extraordinário de nossas letras, antes da Semana de Arte Moderna, no domínio da ficção. Não nos esqueçamos desse fato: nos pioneiros anos do século outro caso extraordinário surgira – o de Euclides da Cunha publicando “Os sertões”. Aqui estamos apenas tratando de literatura de ficção. O extraordinário em Lima Barreto é o seu discernimento de escritor.

Anos depois da publicação de seu primeiro romance, e já depois de publicar “Triste fim de Policarpo Quaresma”, respondendo a uma carta que lhe foi dirigida sobre os seus processos literários e sobre as suas idéias em literatura, Lima Barreto teve oportunidade de expôr qual era a sua opinião acerca do papel do escritor. Essa resposta se acha à frente do volume de contos, editado em 1917, “Histórias e sonhos”, e nela se vê, pela primeira vez em nossa história literária um escritor marcar idealismo a sua posição. É admirável essa definição ética e filosófica de Lima Barreto, depois de declarar que não procurava em nada transpor modelos gregos para as páginas de seus livros: “parece-me que o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm de comum e dependente entre si.” E mais adiante: “não desejamos uma literatura contemplativa, o que raramente ela foi; não é mais uma literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com a morte dos que o adoravam. Não é isso que nossos dias pedem; mas uma literatura militante, para a maior glória da nossa espécie da terra e mesmo no Céu. Essa “literatura militante” teria por fim “concorrer para diminuir os motivos d

Como se vê, trata-se de uma altíssima posição ética e filosófica, que nenhum escritor antes dele havia manifestado. Esta generosa orientação idealista informa a maior parte de sua obra. Ao morrer, em 1922, Lima Barreto gozava de geral conceito, mas a sua obra degenerara. Sua resistência psicológica à adversidade fora precária, e o romancista entregou-se à embriaguês, vindo a falecer precocemente, aos 41 anos de idade. Durante muito tempo suas obras raríssimas foram fazendo esquecida a sua contribuição à literatura brasileira. Só muito recentemente, com “A vida de Lima Barreto” por Francisco de Assis Barbosa (Livraria José Olympio Editora, 1952 – Coleção Documentos Brasileiros, n.70), é que o escritor teve a sua primeira biografia organizada. Conteporaneamente, a Editora Mérito se lançara à divulgação dessa obra, reeditando alguns livros, e lançando edições de alguns inéditos, como o admirável romance “Clara dos Anjos”. No ano passado, porém, o esquecimento que permanecia sobre a obra do escritor veio a desfazer-se com a edição das Obras Completas de Lima Barreto, em 17 volumes, compreendendo não apenas os livros publicados em vida do escritor, mas também os inéditos, rigorosamente anotados e prefaciados por nomes de valor, bem como a correspondência do “ativa e passiva” em dois volumes, os últimos da coleção. (“Editora Brasiliense”, S. Paulo – 1956). Assim, foi uma editora paulista que se lançou ao imprescindível trabalho dessa edição. Deve-se considerar que alguns volumes já estão esgotados.

Apontamos em nossas recomendações para uma formação de leitura de literatura brasileira, apenas o volume “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, mas seria necessário mencionar que cinco ou seis volumes das Obras Completas de Lima Barreto são preciosos, como “Triste fim de Policarpo Quaresma”, “Numa e a ninfa”, “Histórias e sonhos”, “Vida e morte de J. M. Gonzaga de Sá” e “Clara dos Anjos”.

MARA LOBO